Fazer analise é falar na primeira pessoa

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Ontem fui pega desprevenida. E o mais incrível: por mim mesma. O inconsciente, este grande matuto que desbanca o eu no quesito “dono da própria casa”, teve lá o seu tempinho semanal para aparecer, e em um dado momento, suspirei. Não de alívio, mas porque doía existir: “ser protagonista não é nada fácil”.

Sobre isso, duas cenas me marcam. Uma é do filme “the holiday” (vulgo “o amor não tira férias”, mas o tradutor sim. há.) Iris Simpkins, uma moça bonita que não sabe que é bonita, presa numa relação tóxica com um barba-azul (quem nunca?), em uma conversa com o personagem Arthur Abbott, escuta dele a seguinte frase: “Eu vejo que você é uma mulher protagonista, mas por algum motivo está agindo como a melhor amiga. Você deve ser a protagonista da sua própria vida!”. Bum. Hoje ficamos por aqui. A outra cena, que não é bem uma cena, mas um poema, é do Mia Couto: “Porque andei sempre sobre os meus pés, e doeu-me às vezes viver”. Arthur Abbott sabe. Mia Couto sabe. Uma porção de gente talvez saiba. Eu descobri há pouco. Sempre é tempo!

Impossível desvencilhar a descoberta do processo analítico. Passei o resto do dia pensando nos efeitos de uma análise.

A análise nos ensina, basicamente, a sermos protagonistas da própria história. A nos responsabilizar pelas nossas mazelas e encantos, paixões e tormentos; sem chicotes, sem asperezas insuportáveis: a análise nos ensina a tomar as rédeas, escutar o próprio desejo, pra depois dizer do próprio desejo, amar e viver, fora da plateia marcada pela impessoalidade e passividade. É como se fosse uma auto escola, na medida em que nos ensina a conduzir, a nos conduzir, a andar sobre os nossos pés, mesmo que doa, a gastar a sola dos nossos sapatos e não apenas assistir à vida em uma televisão que sequer é nossa.

Não à toa que a plateia conta com o chamado “animador”, que sinaliza quando devemos aplaudir, rir ou permanecer sentados, quietos. O/a protagonista é aquele/aquela que não obedece o “animador”, ri, chora, senta ou levanta quando bem entender e incomoda, às vezes. É claro que tudo isso dentro de um respeito mínimo pelas regras sociais. Mas não é disso que estamos falando. Estamos falando de um “sentar e levantar quando bem entender” subjetivo, íntimo. E sentar e levantar quando bem se entende dói. O desejo cansa, li certa vez. E como. Porque é difícil viver com intensidade, ou em sintonia com a própria verdade. A maioria das pessoas só quer a mansidão, molhar os pés na superfície. É de se esperar, uma vez que é difícil, tem muita fala pra decorar, os textos são enormes e a gente nunca consegue burlar um ensaio. A vida é o próprio ensaio.

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Começa-se uma análise pelos mais diversos motivos. Para se descobrir, para nascer… talvez pela primeira vez. Para dar voz ao inconsciente: este que não conhecemos, este que é “estranho, porém familiar”, escreveu Freud. Este que nos assusta, assombra. Mas, o que assombra mesmo é deixá-lo nas sombras, à mercê de qualquer embarcação, com qualquer comandante ou animador de plateia.

Certa vez escrevi uma poesia sobre a escolha da análise, aqui vai uma parte dela:

“Eu decidi velejar.

dói.

mas esse barco quem toca sou eu.

quase sempre estou só, mas nesse barco quem manda sou eu.”

No fim, estaremos gratos – próximos do que chamam de “felizes”, talvez? – por poder assinar a própria biografia. Assinatura esta que se faz fazendo, gerundiando, com a tinta da caneta do próprio desespero, que se transforma em sofrimento, que se transforma em dificuldade, que se transforma em questão, que se transforma em “isto é meu”. Que se transforma. Sempre. Sigamos, em busca do/da nossa protagonista perdida nos bastidores. Para que esse viver seja marcado, de alguma forma. Para que não seja em vão esse instante que é a vida.

 

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Escrito por Manuela Pérgola – Via Obvious

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