A dor, não se discute.
Gostos, futebol, política, sim… A dor, não.
A sua dor não é maior que a minha; nem a minha, que a sua. Ou que a de nossa vizinha.
A dor de uma criança que perde seu primeiro bichinho de estimação; de um(a) adolescente apaixonado(a) que leva seu primeiro fora – para quem a vida pode perder o sentido; a dor de um corredor que tropeça nos últimos metros de uma maratona; de um paciente, diante de um diagnóstico terminal; de qualquer um de nós, diante da perda de alguém querido; ou de nós mesmos, diante da proximidade do final de nossas vidas.
Cada um tem a dimensão de sua própria dor: que não comporta, assim entendo, parâmetros comparativos. Podem até medi-la com qualquer equipamento que exista… (e deve existir). A dor, não se mede. Talvez este seja inclusive um melhor termo para o que quero dizer com, “a dor não se discute”. Pois falamos sim de nossa dor… falamos e escutamos, da dor dos outros… mas – o quanto ela vale, o quanto ela deixa de valer, não se discute.
Porém, apesar de seu caráter indiscutível, quero por um instante pensar nela, num recorte dela: a dor de quem perde seu filho. Ou ainda, mais um recorte: a dor de quem perde seu filho, diante dos olhos do mundo. Sem nada poder fazer. Há uma falência muito grave, me parece, neste caso, na própria ordem das coisas: na organização, interna e externa, na vida destes pais. Falência no valor da vida, nos referenciais, nas crenças, falência no sentido próprio vida. Em sua continuidade.
A dor de quem perde um pai ou mãe, por mais intensa que seja, lá no fundo algum componente desta dor tange a algo do ‘natural’ no evento das coisas: da passagem do tempo, das gerações, do ciclo previsto da vida. A de um pai ou mãe que perde um filho, parece-me que não. Neste caso, há justamente uma quebra da ‘sequência natural das coisas’*.
Penso agora, especificamente, em Muath al-Kaseasbeh, de 26 anos, feito prisioneiro e morto, à queima-roupa, em uma jaula. Diante dos olhos – e das câmeras – do mundo. Semanas antes, seus pais, engolindo o desespero, a angústia, a impotência e o medo diante da avassaladora verdade que lhes ameaçava – qual seja: de que pouco poderiam fazer por seu filho -, em rede internacional, ajoelhados, pediram: “Por favor, tratem meu filho, como a um hóspede… É assim que eu os trataria”.
É assim que um pai, digno como é o de Muath, pediu – a pessoas atravessadas pela violência, pelo radicalismo, pela barbárie, pelo não-pensamento, pela não-negociação; pela vingança, pelo ódio, e pela morte. Foi assim que ele implorou, em vão. Sabemos o final desta história. Muath, diante de câmeras e dos olhos de todos – o mundo viu, nós vimos – foi queimado vivo.
Depois do ocorrido, durante meses, não pude pensar sobre isto. Eu havia antes acompanhado por um tempo as negociações pela televisão: as suspeitas, as hipóteses, as conjeturas. Havia antes, a possibilidade de ‘troca’ da liberdade de Muath, pela de uma mulher a quem os radicais islâmicos se interessavam. Estávamos ainda, por assim dizer, no campo do humano, do representável.
Até o dia em que soubemos de sua morte, da forma que vimos. E que havia acontecido havia já um mês. Estávamos sendo enganados de que estávamos no campo do negociável. Estávamos sendo zombados. Estávamos era, iludidos, já reféns da barbárie. A imagem, difundida pela Internet, paralisou meu pensamento. Algum curto-circuito me ocorreu, da ordem da não-palavra. Talvez, da mesma forma que Muath havia sido morto: sem a possibilidade da palavra.
Passados estes meses, pude agora finalmente recomeçar a pensar, para a escrita deste texto. Agora, pude começar a mitigá-la – aquela imagem. A atravessá-la, por pensamentos e sentimentos. Revendo a imagem, me ocorreu: ele – piloto voluntário ao combate contra o radicalismo islâmico – foi quem se viu enjaulado. Como se ele fosse o representante do ‘mal’, aprisionado, feito um animal selvagem. Enquanto a selvageria, em realidade, vinha de fora, e não de dentro daquela jaula. E penso que houve aí, uma inversão. E somente pensando nesta ‘inversão’, me proporciono um lampejo de compreensão. Para os radicais que o aprisionaram e o queimaram, Muath, ele, representava o mal.
Melanie Klein (1882-1960), psicanalista de origem austríaca, talvez nos ajude nesta compreensão. Para ela, o funcionamento mental mais primitivo – como o do bebê – funciona desta forma: separando de forma extrema e radical, o bem, do mal. Com o desenvolvimento psíquico e emocional, com o tempo, a criança apreende aos poucos a ponderação, a realidade de que as coisas não são nem só boas, nem só más. A bruxa tem um coração, e a princesa também tem lá suas questões…
Mas nos funcionamentos que persistem da outra maneira, encontramos construídos sobre eles verdadeiros alicerces de intolerância, violência, ódio e destruição. Porque o certo, obviamente, se concentra sobre ‘mim’, e tudo aquilo que é diferente do que eu imponho, deve ser eliminado. E de preferência, de forma odiosa, pois é o ódio que anda de mãos dadas com a intolerância. Trata-se de uma razão delirante, encontrada na base do fundamentalismo: somente o que é meu é bom, e o que é o outro – outro povo, outra religião, outro deus – deve ser extirpado. Um mundo onde não há espaço – em minha mente – para o diferente de mim. Se somente cabe um, tenho, portanto, que eliminar o outro. Dado o devido espaço, este modo de funcionar se encontra na raiz – e no potencial – do genocídio. Já vimos este filme antes. Tentaram extirpar os judeus, os negros, os gays, os ‘outros’. As mulheres “bruxas” da Idade Média, com desejos e vontades próprias – modelo que diferia do que a igreja da época determinava – eram queimadas.
Assim como foi Muath. Queimado pelo ódio, sem nenhum amparo, numa terra de ninguém. Como outras, esta hoje é uma página muito negra em nossa história. Sobre a qual deveremos muito ainda nos debruçar. Pensar, refletir e nos posicionar.
A dor, não se discute. Mas nossa sociedade, história, política, interesses econômicos e de poder, sim. Espero sinceramente que algo ou alguém algum dia possa, aos pais de Muath – e aos outros tantos pais que perderam seus filhos por uma sociedade em grande parte com valores invertidos -, pedir desculpas. Quem? Nós mesmos.
Em memória do jordaniano Muath al-Kaseasbeh, 26 anos, da americana Kayla Jean Mueller, também de 26 anos, e de tantos outros feitos prisioneiros e mortos na barbárie que segue acontecendo, ao nosso lado.
*Ps.: Um trabalho de luto muito peculiar, muito particular, muito lento e doloroso, será posto à prova a estes pais. Qualquer coisa que se diga a respeito será insuficiente, e parcial. Alguém uma vez disse, “A morte de um filho, não está prevista na Natureza”. É uma verdade parcial: na Natureza animal, encontramos situações em que os genitores têm que escolher os filhotes mais fortes, para irem adiante. É a morte ‘prevista’ dos mais fracos: a seleção natural darwiniana. Mas certamente quem o disse, falava da natureza humana. E no humano, a morte de um filho, não tem este registro. O que vemos no humano – em circunstâncias favoráveis – é o decorrer das gerações, através do tempo. A construção do legado, da história, e do herdado – de forma concreta, genética e psíquica – dos mais velhos, aos mais jovens. Ou ao menos, isto é o que tentamos – ou deveríamos – construir, da melhor forma possível, individual e coletivamente, ao fazermos parte desta trama maior, a vida em Sociedade.
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Escrito por Cláudia Antonelli – Via Obvious