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Viver por procuração

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Aqui para nós é a primavera, para mim o período mais lindo do ano, não somente porque os dias começam a ficar mais quentes, mas porque a natureza revive com uma força e beleza fora do comum e a grande maioria das pessoas enfeita suas casas, jardins e varandas com flores. Algumas só sobrevivem alguns meses no ano, mas valem a pena o encanto e beleza pelo tempo que duram. Estávamos eu e meu marido num mercado de flores escolhendo as que plantaríamos na nossa varanda, quando peguei algumas bem murchinhas e desidratadas, ele me olhou com surpresa e perguntou se eu iria comprar aquelas flores assim e eu disse que sim, que iria plantá-las e que logo ficariam bonitas. Ainda surpreso, me disse que ele não compraria, ao que respondi que é porque eu as estava olhando com os olhos do coração.

 

Tem pouco mais de uma semana que plantei minhas flores e elas já estão se abrindo ao sol, variadas cores nas mesmas plantas. Eu as olho com olhos de amor e tenho a impressão que sabem disso. Claro que ainda precisam de muito cuidado para florescerem em plenitude, mas isso virá, não tenho dúvidas.

 

Somos assim muitas vezes como essas plantinhas secas e desidratadas. Olhando-nos, talvez, no espelho, deixamos de acreditar em nós, porque nos cremos demasiadamente machucados pela vida. E quando olhamos em volta, nos sentimos ainda menores, como se os erros que tivéssemos cometido fossem irreparáveis ou imperdoáveis. É que nos esquecemos que Deus é um Pai que olha sempre com os olhos do coração e para Ele não existe irreparável e nem perdido para sempre. Quando olha os galhinhos secos e miúdos que somos, Ele vê flores belas, ainda escondidas, talvez, mas radiantes de formosura. Não conheço ninguém que se tendo entregado aos cuidados do pai não tenha sido recuperado, dado flores e frutos. Deus não vê em nós dificuldades, Ele vê possibilidades. E o que nós mesmos vemos conta muito e muito na maneira como estamos enfeitando a vida. Ou como podemos enfeitar amanhã…

Viver através dos outros é uma maneira tanto de alcançar o inalcançável quanto de fugir à eventuais conseqüências desse mesmo tipo de viver.

 

Sonhamos não o sonho dos outros, pois nada mais individual e pessoal que sonhos, mas através do que outros possuem ou aparentam ter.

 

Vemos a vida como quem assiste uma novela, nos ligamos, nos emocionamos, até sofremos e nos alegramos, mas podemos a qualquer momento desligar a televisão e fazer alguma outra coisa. Nos envolvemos sem estarmos verdadeiramente dentro, estamos sob a chuva cobertos por um guarda-chuva.

 

Assim também vemos o aperfeiçoamento pessoal. Tão brilhante e aquecedor quanto a luz do sol, a grandeza de certas almas chega até a nós, porém vemos isso como se fôssemos simples expectadores da vida.

 

É bonito ser bom, é nobre ser humilde e ter em si o dom do perdão, ou pelo menos a vontade maior de se chegar até lá, mas nos sentimos incapazes de atingir tal grandeza, como se o “ser bom” e o “procurar construir um mundo melhor” fosse dado apenas a certos privilegiados dos quais nos excluímos.

 

Toda caminhada é um trabalho sobre si mesmo. Se a mente não ordena as pernas não andam. Pensar que a vida foi construída apenas para alguns privilegiados e que podemos ficar de fora é negar a nós mesmos a possibilidade de chegar a um cimo. O que é difícil para uns o é para outros, talvez em escalas diferentes, mas difícil ainda assim.

 

Por que o ser humano recusa-se terminantemente a uma mudança radical, quando essa mudança é para seu próprio bem? Talvez por se sentir incapaz, não merecedor ou simplesmente porque a acomodação exige menos esforço.

 

Pedras preciosas são, a princípio, grosseiras pedras que podem ser confundidas com quaisquer outras. O polimento requer quebra, corte, mudança e tempo. Entregar-mo-nos a esse polimento é recolher-mo-nos, abandonarmos as idéias pré-concebidas e abrir-mo-nos a algo novo, desconhecido e temível ao mesmo tempo.

 

Preferimos sim sonhar através dos outros. Vivemos sem vivermos e alcançamos nosso alvo sem chegarmos a lugar nenhum.

 

Só que o mundo foi feito para todos nós. Ele foi cuidadosa e minuciosamente sonhado e realizado e nós somos as privilegiadas flores que o Senhor plantou. Importa pouco se essa flor nasceu antes ou depois, se é mais viva, maior ou mais resistente, Deus dá a cada um de nós meios de sobrevivência e a oportunidade de crescimento.

 

Ele nos dá não sonhos longíquos e impossíveis, mas ferramentas e verdadeiras possibilidades. O que vamos fazer de tudo isso depende inteiramente de nós.

 

Algumas gotas de perfume

 

Os retornos da vida nem sempre são visíveis, nem sempre são caminhos previsíveis ou nem sempre estão ali na frente. E o fato de se ter que viver nessa incógnita do dia seguinte faz com que alguns fechem-se, como conchas que escondem em si pérolas de inestimável valor. Muitos hesitam em dar de si porque acham que oferecendo-se, perdem-se. Constroem muros em torno de si, ilham-se. Certas pessoas não se entregam a amores, ficam reticentes ante abraços e à ternura de abrir-se inteiramente, desfolhar o coração e desnudar a alma, como fazem as flores, sem querer saber o porquê e se haverá algum retorno. Aqueles que se doam incessantemente, totalmente e integralmente desgastam-se sem olhar para trás e sem querer ver longe demais, crescem em estatura da alma, mesmo se em alguns momentos o cansaço e o desânimo atingem levemente o coração. Mas amar incondicionalmente é amar de olhos fechados, é transformar através das nossas vivências a visão que outros têm da vida, é contribuir para a escalada na busca do eterno. Algumas gotas de perfume recaem sobre nós quando somos bons, quando nosso prazer maior está em servir e nosso eu e nosso ego ficam de lado. Não é possível dar de si sem que um pouco do gesto não recaia dentro do coração, sem que Olhos atentos e agradecidos estejam pousem-se sobre nós, abençoando-nos.

 

Que o Senhor abençoe a cada um de vocês, restaurando cada recanto da alma, mostrando a cada qual o valor que ele tem!

 

Com muito carinho, deixo aqui meu abraço apertado!

 

Letícia

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